terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

A Primeira Dinastia Postal Portuguesa


Em meados de 1532, morre Luís Homem e por carta do então embaixador português em Madrid, Álvaro Mendes de Vasconcelos, de 10 de Novembro de 1532, iniciava-se a corrida para a sucessão do ofício de Correio-Mor do Reino com a muito curiosa recomendação do diplomata, que escrevia ao rei dizendo: "António Ribeiro chegou aqui ontem, sábado [...] parece-me este, muito bom servidor e mui desviado dos outros correios, e porque me dizem que V. Alteza tem por prover o ofício de Correio Maior, lhe lembro o que lhe já sobre isto escrevi, porque conheço bem todos os que neste cargo podem servir e verdadeiramente senhor, de nenhum confiaria tanto como deste, pelo que dele e de todos conheço e o ofício é muito importante, mandando V. Alteza guardar a ordem que para o ofício e para vosso serviço cumpre, porque a (...) a seguridade dos correios e avisos que é o principal fora, sejam cada ano mais de dois ou três mil cruzados. V. Alteza haverá e mandará fazer o que mais for servido."[1] Apesar do empenho da recomendação, António Ribeiro não logrou o intento, pois o escolhido foi o correio Luís Afonso, que já atrás vimos passar por momentos difíceis no exercício da sua função de correio a cavalo.

Pouco tempo depois, por cartas régias de 20 de Dezembro de 1532 e de 13 de Janeiro de 1533, D. João III nomeia Luís Afonso como Correio-Mor do Reino e lhe acrescenta um ordenado anual de 15.000 réis e a fixação do máximo de doze correios com os respectivos privilégios e isenções, para o exercício do referido ofício. A importância dos correios condutores parece óbvia, considerando a responsabilidade de suas funções e dos privilégios que gozavam, tais como as isenções a certos impostos e contribuições, bem como a faculdade de usarem das armas reais e de levarem espada e punhal para a sua defesa.

Luís Afonso, de longa data servia a casa real. Em 1515 já servia como Moço de Estribeira, onde eram normalmente recrutados os correios reais e em 1522 já era correio a cavalo. Parece que desfrutava de particular confiança do monarca D. João III, conforme se deduz da correspondência deste soberano com o seu valido Conde de Castanheira, Vedor da Fazenda, donde transparece aquela especial confiança em Luís Afonso. Senão, veja-se a seguinte passagem:

"Quanto ao que dizeis de António Vaz, parece-me bem vir cá, para o mandar logo despachar com alguma mercê para a Índia, para ir nestas primeiras quatro naus, como vos tenho escrito; e manda lá Luís Afonso para vir com ele e olhar que se não possa ir para outra parte; e tanto que cá fôr, o mandarei logo despachar com seu contentamento, para se ir à Índia. Vós lhe direis que venha com Luís Afonso com as melhores palavras que vos parecer e com ele mais seguro possa vir."[2]

E para reforçar ainda mais a ideia sobre a confiança daquela monarca no seu correio, fica a referência de Frei Luís de Sousa nos seus Anais del Rei D. João III na parte em que trata das negociações com Roma sobre o estabelecimento do Tribunal do Santo Ofício em Portugal, onde dizia que "consta de uma carta escrita para a Imperatriz em 25 de Setembro de 1531, que El Rei mandava Luís Afonso a Roma pelo despacho para a Inquisição".[3]

Com Luís Afonso, inaugura-se uma nova fase da história dos correios portugueses com o início da primeira dinastia postal lusitana, pois até ao final do século XVI, o ofício de Correio-Mor do Reino permanecerá na descendência feminina de sua família, onde sua filha e mais tarde a sua neta, levarão como dote no casamento o referido ofício. Isto porque, como já foi dito, no sentido patrimonialista que é dado aos ofícios públicos no antigo regime e de acordo com a doutrina jurídica daquela época, previlegiava-se o direito consuetudinário, que consistia na espectativa de os filhos ou os noivos das filhas, herdarem os ofícios dos pais, desde que estes os tivessem bem servido e se verificasse a capacidade do sucessor para o desempenho do cargo.[4] Para isso, bastava obter, em época oportuna, um alvará de lembrança que garantisse a sucessão.

Durante a gestão de Luís Afonso, ainda se conhece um incidente ocorrido em 1552 com Pedro Eanes, detentor de cavalos de posta na Vila de Landeira, do qual se queixava aquele a D. João III escrevendo que "fazia muitos agravos aos correios que por ela passavam e não queria cumprir os escritos que levavam do Correio-Mor e os rompia falando palavras descorteses."[5]

Por alvará de lembrança de 6 de Setembro de 1562, durante a regência de D. Catarina na menoridade de D. Sebastião, ordenou-se "que por me pedir Luís Afonso, Correio-Mor em meus Reinos e na cidade de Lisboa, e por confiar de Francisco Coelho, seu genro, meu moço da câmara, que no dito ofício me servirá com aquele recato, fidelidade e diligência que cumpre a meu serviço, e por a ambos fazer mercê: hei por bem e me praz, que por falecimento do dito Luís Afonso, fique ao dito Francisco Coelho, seu genro, o dito ofício de Correio-Mor em meus Reinos e na cidade de Lisboa e lhe faço mercê para que o tenha e sirva em dias de sua vida com o mantimento, ordenado, privilégios e liberdades, assim e da maneira que ora tem o dito Luís Afonso, por provisão de El Rei meu senhor e avô, que santa glória haja e por sua guarda e minha lembrança[6] lhe mandei dar este alvará pelo qual, quando for tempo, lhe mandarei fazer provisões em forma do dito ofício, conforme as que o dito seu sogro dele tem".[7]

Três anos depois, após a morte de Luís Afonso, por carta régia de 20 de Setembro de 1565, é provido Francisco Coelho como Correio-Mor do Reino, e por uma apostila de 13 de Maio de 1566 se declara que "porquanto nesta carta atrás escrita, está uma cláusula que diz que se não tolherá a qualquer pessoa que quiser mandar algum recado ou cartas por algum criado seu, ou outra alguma pessoa que não seja correio para qualquer parte que quiser: hei por bem e me praz, por justos respeitos que me a isso movem, que se não use da dita cláusula e em todo o mais se cumpra a dita carta como nela contém e assim esta apostila".[8] A revogação dessa faculdade que até aí se dava aos particulares de renunciar ao uso exclusivo do correio para o transporte de sua correspondência, vem afinal ao encontro da ideia de um maior reforço do monopólio postal por parte do Correio-Mor, como também de uma melhor estruturação do serviço, através de uma maior regularidade na condução das cartas em geral. Consistia, com certeza, numa tentativa de coibir os abusos decorrentes da proliferação de mensageiros particulares que concorressem com o privilégio inerente ao ofício público de Correio-Mor do Reino.

Apesar da anulação da citada cláusula, Francisco Coelho, que exerceu o cargo entre 1565 a 1577, ainda se viu com problemas na administração do seu ofício, pois conforme o alvará de 20 de Janeiro de 1575, D. Sebastião ordenava "que Francisco Coelho, meu Correio-Mor, me enviou dizer que Luís Afonso, seu sogro, que também foi Correio-Mor e ele Francisco Coelho, estiveram sempre em posse, por razão do seu ofício, dos correios que iam destes reinos para fora deles despachados com cartas e negócios de meu serviço ou de partes e os que vinham de fora destes reinos, despachados para mim por meus embaixadores ou por quaisquer pessoas que lá faziam meus negócios, lhe pagarem a dízima de todo o dinheiro que se lhe dava para as viagens e que o mesmo se costumava pagar ao Correio-Mor de Castela, de que apresentava uma certidão sua e que ora alguns correios meus, de algum tempo a esta parte, se levantavam contra este direito que lhe pagavam de torna viagem e lhe não queriam pagar; pedindo-me que mandasse que lhe pagassem todos como sempre se fizera, e visto seu requerimento com informação que sobre este caso mandei tomar pelo Licenciado Lourenço Corrêa do meu Desembargo, Juiz dos Negócios de minha Fazenda, porque constou ser assim como o dito Correio-Mor dizia e visto outrossim, uma sentença que apresentou dada neste caso pelo Licenciado Gaspar da Nóbrega do meu Desembargo, que foi Corregedor do Cível da cidade de Lisboa, em favor do dito Correio-Mor Luís Afonso e a dita certidão do Correio-Mor de Castela: hei por bem e me praz, que todos os correios que de fora destes reinos vierem despachados a mim por meus embaixadores ou por outras pessoas que lá fizerem negócios de meu serviço, paguem ao dito Correio-Mor, a dízima do dinheiro que lhe for dado para sua viagem, assim e da maneira que pagavam os correios que desses reinos vão despachados por mim para os ditos meus embaixadores e pessoas que fazem meus negócios".[9] E por uma apostila de 5 de Agosto do mesmo ano de 1575, complementava dizendo: "E tudo o que acima é dito, se cumpra assim nos correios como em quaisquer outras pessoas[10] que vierem despachadas a mim de fora destes reinos".[11]

Em 10 de Junho de 1577, alcançou a viúva do Correio-Mor, um alvará de lembrança "que havendo respeito aos serviços de Francisco Coelho que foi meu Correio-Mor e assim de Luís Afonso, seu sogro, que antes dele teve o dito ofício: hei por bem de fazer dele mercê a pessoa que casar com uma das filhas do dito Francisco Coelho, neta do dito Luís Afonso, qual eu nomear, sendo pessoa de que eu seja contente";[12] e onde, pela confirmação por carta régia do Cardeal D. Henrique de 7 de Setembro de 1579, "que por parte de Manuel de Gouveia me foi apresentado um alvará por que houve por bem fazer mercê do ofício de Correio-Mor, que vagou por falecimento de Francisco Coelho, a uma de suas filhas, com uma apostila por mim assinada por que eu houvesse por bem que casando ele, Manuel de Gouveia, com Inês da Guerra, filha mais velha do dito Francisco Coelho, a mercê conteúda no dito alvará houvesse nele efeito [...] e por fiar dele que nas coisas de que o encarregar, me servirá bem e com o recato, diligência que a meu serviço cumpre e por lhe fazer mercê, tenho por bem e o dou, ora daqui endiante, por Correio-Mor de meus Reinos e desta cidade de Lisboa [...] e haverá o dito ofício de mantimento e ordenado, vinte mil réis em cada um ano a custa de minha fazenda".[13]

Obtém assim Manuel de Gouveia, no início da sua administração, um aumento de 5.000 réis de "mantimento e ordenado" em relação aos seus antecessores. Mas, por pouco tempo conseguirá exercer tranquilamente o seu ofício, pois que a entrada do Duque de Alba em Lisboa em Agosto de 1580 e a consequente união ibérica daí decorrente, faz com que assuma o ofício de Correio-Mor em Portugal, um representante do Correo Mayor de Castela, Juan del Monte, que exerce abusivamente o ofício durante a permanência de Filipe II e sua corte em Portugal, entre Agosto de 1580 a Agosto de 1583. Somente em 4 de Outubro de 1592, conseguirá Manuel de Gouveia uma sentença favorável, após um longo processo judicial contra D. Juan de Taxis, Correio-Mor de Castela, para a compensação dos prejuízos sofridos durante a forçada ausência na administração do seu ofício de Correio-Mor de Portugal.

De acordo com a liquidação da sentença[14] e as testemunhas arroladas "em o Rossio desta Cidade de Lisboa, no escritório do ofício do Correio-Mor [...] o que deduziu neles, foi que o réu [Correio-Mor de Castela] por seu assistente, Juan del Monte, entrou a servir o dito ofício desde o mês de Agosto do ano de oitenta e o servira até o mês de Agosto de oitenta e três, que são três anos e isto afirmam assim todas as testemunhas do autor[15] [Manuel de Gouveia ...]. Prova mais, que desde os anos que entrou ele autor a servir o dito ofício, lhe importa o rendimento dele, três mil cruzados cada ano[16] [...] e dão as ditas testemunhas razão de seus ditos, por verem fazer a conta pelos livros e por saberem que no dito ofício pertencem as décimas de todo o dinheiro que se dá aos correios de pé e de cavalo, assim aos que vão em serviço de Sua Majestade, como de partes.

E assim lhe pertencem mais, as entradas e as apresentações de todos os correios, e os trinta por cento que o réu, por composição [com o autor] lhe paga de todas as cartas que vão para França, Itália e mais partes de Espanha, excepto Madrid [...] prova [também] que no tempo que o réu lhe usurpou o dito ofício, era de muito mais rendimento, porque estando aqui Sua Majestade, os negócios eram muito mais e se expediam correios ordinariamente para todas as partes de Castela e Itália, França, Flandres e para todo este reino e do Algarve, como afirmam todas as testemunhas. [...]

E acrescenta mais, que posto que haja agora um ordinário[17] cada semana, muito mais importavam os dois que então naquele tempo iam cada mês para Itália que não estes que vão cada sábado a Madrid, porque os gastos dos de Itália são dobrados e tem outros muitos percalços e além disso, em lugar deste ordinário de hoje, havia então cem mil (sic) extraordinários por maneira que era tanto o negócio e os correios tão contínuos, que importava ainda o dito ofício muito mais, [...] conforme a isto, deve vossa mercê mandar que se faça a conta, principalmente porque, vendo-se o réu convencido e como o autor não pedia senão menos do que lhe pertencia, não contrariou [...] e vendo que era muito melhor pagar a razão de três mil cruzados por ano, que não fazer-se a conta pelos seus livros do que recebera em cada um ano estando aqui Sua Majestade e, portanto, pois o autor se satisfaz com os ditos três mil cruzados à razão deles, deve vossa mercê mandar que o contador faça conta do que se monta nos ditos três anos.

Lembre-se mais, que dado o caso que naquele tempo não houvesse ordinário para Sevilha, era tanto o negócio para lá e para toda a Andaluzia, que importava muito mais, como afirmam todas as testemunhas".[18]

Com a morte de Manuel de Gouveia alguns anos depois, em 1598, chegava ao fim a primeira dinastia postal portuguesa. Com a venda do ofício em 1606 à Família Gomes da Mata, terá então início uma nova e derradeira dinastia postal.



[1] Idem, "O Correio e o Estabelecimento da Inquisição em Portugal" in Coisas e Loisas do Correio, Lisboa, CTT, 1955, p. 130.

[2] Idem, p. 127.

[3] Idem, p. 128.

[4] Cf. Hespanha, op. cit., pp. 384 e segs.

[5] Godofredo Ferreira, Dos Correios-Mores..., p. 20.

[6] O grifo é nosso.

[7] Arquivo Nacional da Torre do Tombo (doravante ANTT), Ministério do Reino, maço 634.

[8] Idem.

[9] Idem.

[10] O grifo é nosso.

[11] Idem, doc. cit.

[12] Idem.

[13] Idem.

[14] Biblioteca da Universidade de Coimbra (doravante BUC), manuscrito nº 1489. A Biblioteca e Arquivo Histórico da Fundação das Comunicações, possui uma cópia feita por Godofredo Ferreira.

[15] Serviram de testemunhas: Manuel da Fonseca, António Rodrigues, Francisco Gusmão e António de Cabanas, todos correios a cavalo; Francisco Lourenço, criado do Correio-Mor e Simão Luís, que servia como Tenente do Correio.

[16] É interessante notar que o valor estimado para o rendimento anual do ofício é muito aproximado da avaliação que fez o embaixador português em Madrid em 1532, Álvaro Mendes de Vasconcelos, quando da recomendação de um sucessor para Luís Homem (vide p. 11).

[17] A denominação de correio ordinário significava a partida de correios regulares em dias certos, onde se diferenciava do correio extraordinário que só partia em ocasiões especiais que justificassem a sua necessidade.

[18] Idem, doc. cit.

1 comentário:

Anónimo disse...

Estimado Sr. Machado:

Espero que me entienda ya que le escribo en Espanol. Disfrute mucho el articulo sobre la historia postal en Portugal, sobre todo en el siglo XVI. Uno de mis antepasados fue Juan del Monte, teniente de correo mayor del rey Felipe II. Nunca supe que estuvo en Portugal y que fue "Correio-Mor do Reino" desde 1580 ahasta 1583. Como podria yo obtener mas informacion o copias de documentos sobre Juan del Monte en Portugal? Gracias anticipadas por su respueta. Atentamente.

Dr. Heriberto A. Tejeda del Monte
Corpus Christi, Texas, USA
email: tejhea@yahoo.com