terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

A Correspondência Comercial e a Prática Postal no Final do Séc. XVI

É muito comum na escassa bibliografia referente ao tema, a equivocada ideia de que o correio, nessa época, só serviria quase que exclusivamente aos soberanos, nobres e grandes senhores, ou melhor dizendo, àqueles poucos privilegiados que saberiam ler e escrever.[1] Se por um lado é evidente que o nível de instrução, de certa forma determina a amplitude e a disseminação da necessidade e do hábito das pessoas se comunicarem à distância através da escrita, por outro, seria muito enganoso julgar que estes poucos privilegiados escrevessem ainda menos do que se possa imaginar.

Através da existência de importantes arquivos de correspondência comercial que sobreviveram e chegaram praticamente intactos aos nossos dias,[2] poderemos ter uma ténue ideia do que seria o tráfego postal europeu no período de que nos ocupamos. Isto, sem falar da própria correspondência oficial ligada ao Estado, espalhada pelos arquivos públicos, onde poderemos nos dar conta da enorme quantidade de cartas que foram pulverizadas pelos quatro cantos do mundo e que serviu de elo de ligação ao processo de expansão europeia nos outros continentes e que hoje notoriamente se conhece como a época dos descobrimentos. Por aí, fica-se com a ideia de que apesar de poucos dominarem a leitura e a escrita, ainda assim a correspondência era grande.

Para provar o intenso tráfego postal, bastaria olharmos no mapa as distâncias das grandes praças comerciais europeias: Veneza, Génova, Lion, Bruxelas, Cidades Hanseáticas, Sevilha, Barcelona, Lisboa, etc.; sem falar nas de grande importância política, tais como: Roma, Paris, Londres... Não nos devemos esquecer ainda, que a noção de uma alfabetização mais ampla e massiva da população em geral, data de meados do século XVIII, mais precisamente durante a época do Iluminismo, onde o primado da razão levará a uma maior valorização de todas as formas do conhecimento humano sendo a aprendizagem da leitura e da escrita o ponto de partida e requisito indispensável para a absorção das Luzes do tempo.

Mas que balanço poderíamos nós fazer desse quase centenário serviço de correios em Portugal, nos finais do século XVI?

O incansável Godofredo Ferreira em dois preciosos artigos sobre os correios portugueses no século XVI,[3] transcreve uma série de extractos de cartas de mercadores portugueses (entre as quais as do futuro Correio-Mor Luís Gomes da Mata) com os Ruiz Embito, seus correspondentes em Medina del Campo,[4] em Espanha, que pela sua grande importância reproduziremos, para dar uma melhor ideia da prática das comunicações postais e das angústias que cercavam a espera de notícias para uma boa efectivaçäo do comércio.

"De 21 de Fevereiro de 1575:

As anteriores que a v. m. escrevi, foi em 30 do passado e em 2 deste, que ambas foram por um correio que se chama Luzon, que ia para Flandres e dava a entender a cada hora que estava de partida e ainda depois se deteve alguns dias [...]

De 23 de Fevereiro de 1575:

Em 21 deste, escrevi a v. m. e entendo que ainda está aqui, que cada dia nos burlam estes correios e nos dizem que partem e não há neles boa ordem [...]

De 12 de Abril de 1575:

[...] porque me haviam dito que havia de partir um correio amanhã, fazia conta de responder a ambas e a esta hora me disseram que havia 3 horas que partira e tenho que enviar esta ao caminho a procurá-lo [...]

De 2 de Abril de 1576:

[...] em esta serei breve porque a esta hora, que é alta noite, me disseram que partia este correio [...]

De 15 de Outubro de 1576:

[...] a que escrevi a 9, vai com esta, porquanto não houve correio até agora que me dizem que vai este em diligência, por via Medina, para Flandres [...]

De 21 de Dezembro de 1576:

[...] vejo como havia muitos dias que estava v. m. sem carta nossa, que agora vimos a entender a grande velhacaria que fazem aqui os oficiais da casa do correio, porque havia em 22 de Novembro pensando que as levava Luzon e depois soubemos que ele estava aqui escondido e depois se fêz constar que o haviam detido por parte de El Rei; íamos pelas nossas cartas e nos afirmavam e juravam que tinham seguido por outro correio e parece que é falso [...]

De 16 de Janeiro de 1577:

[...] mas é tão grande a velhacaria que aqui se faz em casa do Correio-Mor, que ordinariamente dão estes descômodos aos mercadores e não nos espanta não estar aí Luzon, pois partira daqui em 14, havendo 45 dias que diziam que tinha partido [...]

De 28 de Março de 1577:

[...] vejo as velhacarias do correio que v. m. entende bem e bom é estar de acordo com eles [...]

De 13 de Abril de 1577:

Vejo o que v. m. me diz do correio Luzon que ainda estava em Bilbao esperando pela frota para passar a Nantes e receio que nos dê dano em relação às letras que nos leva; paciência! [...] que certo é lástima o que fazem os oficiais do Correio-Mor, que muitas vezes pensamos que nossas cartas partiram e elas estão aqui um mês, e entendemos que fazem das cartas mercadoria e que quando estamos escrevendo para um correio que se lhe não querem dar tantas cartas, as deixam para outro [...]

De 29 de Julho de 1577:

[...] assim haverá estado v. m. sem carta, não é por minha culpa, senão pelas desordens da casa do correio que há mais de 20 dias que dizem que Satalar, correio, parte e nunca acaba por partir [...]

De 19 de Fevereiro de 1578:

[...] a esta hora me disseram que ia este a Madrid, serei breve porque está na barca[5] [...]

De 30 de Junho de 1578:

[...] entendo à má ordem que há nisto dos correios e, como v. m. diz, o melhor é escrever por via Madrid [...]

E também digo que Sua Alteza partiu com a armada,[6] que partiu um dia depois de São João, com mais de 800 velas, em que se dizia que vão mais de 50.000 homens de guerra, que Deus lhe dê a vitória, parece que com a sua ausência não haverá tantos correios para Madrid [...]

De 16 de Outubro de 1578:

Ontem escrevi a v. m. e por via de Elvas, e por me parecer que iria demorada por o portador Juan Satalar que havia dito que iria por toda esta semana e agora, que é alta noite, madrugada, me disseram que logo partia [...]

De 2 de Dezembro de 1595:

As grandes chuvas impedem o correio de Castela de chegar a tempo [...]

De 9 de Dezembro de 1595:

Seria muito bom que se alcançasse licença de Sua Majestade para que houvesse ordinário para Flandres, por via França e vs. ms. e os demais senhores o devem procurar como coisa em que vai muito à contratação [...]

De 20 de Janeiro de 1596:

O maço que vai para Flandres, folgaríamos chegasse a tempo que o possam enviar por algum extraordinário, porque os correios de Itália nunca acabam de chegar [...]

De 4 de Julho de 1598:

Os correios ordinários não chegam há três semanas [...]

De 14 de Julho de 1598:

Os correios andam tão desvairados que não se sabe quando vêm nem quando partem [...]

De 1 de Agosto de 1598:

Os correios andam muito desordenados, que nem vem daí como de costume, nem se sabe quando haja de partir daqui algum. Esta noite dizem que o haverá e por isso escrevo estas regras [...]

De 5 de Dezembro de 1598:

Responderei em esta à de v. m. de 23 de Novembro, vinda com o ordinário passado que me trouceram a esta quinta de meu pai, onde eu e ele, e todos mais, estamos recolhidos por causa do mal da peste que lavra na cidade cada dia mais, segundo entendemos, que certo é grande castigo do céu [...]

De 12 de Fevereiro de 1599:

Muitos dias há que não tenho cartas de v. m. e se devem ter perdido ou estão juntas em qualquer parte, que tudo causa o tempo e andarem as coisas fora do seu curso com este mal da peste, que dizem vai muito adiantada em Lisboa e morre muita gente. Remedei-o Deus que pode [...]

De 19 de Fevereiro de 1599:

Há mil dias que não tenho carta de v. m. e se devem perder todas, o que é grandíssimo descómodo para o negócio, pois não sei o que se passa em nada e que por diante assim não suceda, suplico a v. m. que as que me escrever e quaisquer cartas de Flandres que venham, mas encaminhe tudo debaixo de sobrescrito para "Galho, San Roman y Ibarra", ou para "Brisuela & Francesque", se v. m. com algum deles correr nalguma coisa e, em falta, dando-os aí aos seus para que as encaminhem, que desta forma terei minhas cartas que tanta falta me fazem, porque eles vivem não muito longe daqui e têm a facilidade de haver suas cartas à mão [...]

De 15 de Maio de 1601:

A desordem cresce nos correios [...]

De 2 de Abril de 1603:

[...] desentendimento entre os correios de Espanha e de Portugal, os primeiros detêm as cartas vindas dos Países Baixos ou de Itália endereçadas para Lisboa [...]

De 6 de Abril de 1603:

[...] serve esta de coberta à que com ela vai para Pedro da Veiga ao qual será v. m. servido dá-la encaminhar, ou enviá-la à casa do correio, para que a leve o primeiro que for e porque entre os Correios-Mores de aí e daqui há diferenças, com que o daí detém as cartas que vêm de Flandres e de Itália e para aqui não as quer enviar, o que é muito mal feito; suplico a v. m. me faça favor de enviar as cartas que aí houver de Flandres e de Itália para mim ou para Belchior da Veiga e Irmãos, e que se enviem com o correio que daí deverá partir para aqui ao outro dia que esta chegar e que o mesmo se faça quando cheguem aí alguns correios de Flandres e de Itália, e que se cobrem e enviem as minhas cartas sem que se detenham por aí, como faz o Correio-Mor por respeito de suas diferenças".

Nos vários exemplos acima transcritos, fica-se com a noção da relativa irregularidade da correspondência comercial, sujeita a várias vicissitudes, tais como a desorganização no ofício do Correio-Mor, intempéries climáticas, diferendos entre os Correios-Mores de Portugal e de Espanha, flagelo da peste, etc.. Mas, não nos esqueçamos das proporções do tempo e dos perigosos anacronismos na análise de um serviço executado em anos tão remotos, onde os meios de transportes e as vias de comunicação deixavam sempre muito a desejar. Mais uma vez, a análise sempre muito lúcida de Fernand Braudel[7] vem nos auxiliar e melhor esclarecer que: "De facto, os homens do século XVI estão conformados com todas as lentidões. Uma carta, de Espanha para Itália, tanto pode seguir por Bordéus ou Lion como por Montpellier ou Nice. Em Abril de 1601 uma carta para Henrique IV do Senhor de Villiers, seu embaixador em Veneza, chega a Fontainebleau pela via de Bruxelas... Durante os anos 1550-1560, os embaixadores do rei de Portugal em Roma encaminharão muitas vezes as suas cartas por Antuérpia. É que a duração dos trajectos não é em função do seu comprimento mas da qualidade e da frequência dos correios."[8] E complementa, afirmando:

"A revolução moderna dos transportes não aumentou apenas as velocidades (de maneira extraordinária); suprimiu (também é importante) a incerteza que os elementos [geográficos e climáticos] antigamente impunham. Hoje, o mau tempo significa apenas um maior ou menor desconforto. Excluindo o acidente, já não influi nos horários. No século XVI, todos os horários dependem dele. A irregularidade é a regra sem surpresa."[9]

Assim sendo, as queixas dos mercadores daquela época pouco difeririam (guardadas as devidas proporções) das reclamações que, há não muito tempo, ainda fazíamos da demora e de ocasionais extravios das nossas cartas.



[1] Vide, principalmente, os vários trabalhos de Godofredo Ferreira sobre a história dos correios portugueses na bibliografia.

[2] Como exemplo, os trabalhos publicados por José Gentil da Silva e Luís Lisanti (vide bibliografia).

[3] "Testamento de um Negociante e Banqueiro que foi Correio-Mor do Reino" e "O Correio Português para Além Fronteiras no Século XVI e as Queixas dos Mercadores" in Algumas Achegas para a História do Correio em Portugal, Lisboa, CTT, 1964.

[4] Por sua vêz, baseado nas publicações de José Gentil da Silva (vide bibliografia).

[5] Refere-se à barca que fazia a ligação entre Lisboa e Aldeia Galega (actual Montijo) por onde seguia a posta até Elvas, donde passava para Badajós.

[6] Refere-se à partida de D. Sebastião para Marrocos, onde perderá a vida em Alcácer Quibir.

[7] Op. cit.

[8] Idem, p. 404.

[9] Idem, p. 407. O grifo é nosso.

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