terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

A Criação do Ofício de Correio-Mor das Cartas do Mar

Com a interrupção do tráfego postal através de Espanha, viu-se a coroa portuguesa na necessidade de suprir essa carência de comunicação com os seus principais aliados, através da correspondência por via marítima.

Segundo o Prof. Veríssimo Serrão, ao analisar as linhas de comércio externo português durante esse período:

"O intercâmbio que se estabeleceu ou renovou no quadro político da Restauração visava também uma finalidade económica, na compra de víveres e na permuta de géneros e objectos indispensáveis ao Reino [...].

A França tornou-se então o grande pólo dessas relações que tiveram como término, em maior escala, as fozes do Loire e do Sena, com destaque para os portos de Nantes, La Rochele e Ruão. Na primeira cidade desembarcaram quase sempre os nossos diplomatas com destino a Paris, por ali fazendo também escala os principais correios de e para Lisboa. Mas sucedeu que as condições marítimas levaram as frotas até La Rochele (a 'Arrochela' dos portugueses) [...]. Os três portos receberam muitas cargas de açúcar, gengibre, pau-brasil e azeite, cuja venda se destinou, algumas vezes, a pagar os nossos embaixadores em Paris e na Holanda. Pelo porto rochelês fazia-se ainda o principal tráfego de material de guerra e de cavalos para a defesa da Restauração. Mantendo uma tradição que vinha do século XVI, os mercadores de Viana do Lima tinham intensas relações com esse porto e, também, com as 'partes do norte', o que trazia grande lucro aos mercadores da vila."[1]

Nesse sentido, ordenou D. João IV por decreto de 13 de Setembro de 1646 ao Conselho da Fazenda, que: "Para ganhar tempo nos avisos que tenho fora do reino, convém muito a meu serviço que cada mês (pelo menos) parta um barco de aviso de Viana à França, assim e da maneira que no tempo atrás se quis começar a introduzir. O Conselho da Fazenda entendendo do Correio-Mor o que passou naquela ocasião e ouvindo-o sobre os meios por que se poderá assentar esta comunicação com menor despesa de minha fazenda, me faça consulta do que parecer, sem momento de dilação."[2]

Mais tarde, num segundo decreto de 18 de Maio de 1647 ao mesmo Conselho, insistia o monarca que: "Convém a meu serviço enviar uns despachos à França e outros que dali se hão de remeter a diferentes partes e porque não parte navio e é provável não partirá tão cedo, resolvi mandar partir de Viana para este efeito. O Conselho da Fazenda envie à Secretaria de Estado a ordem de dinheiro necessário para este efeito e a quantidade será a que lhe parecer necessária porque a há de entregar e fazer o preço o Corregedor daquela Comarca, e isto se fará logo."[3]

Contudo, as dificuldades financeiras da coroa eram muito grandes e conforme a análise do Prof. Oliveira Marques:

"A política económica de D. João IV visou obter dinheiro de qualquer maneira, principalmente para prover à defesa efectiva. As Cortes votaram subsídios mas o governo, actuando com prudência, tentou o mais que pôde não aumentar os impostos. Obtiveram-se somas avultadas dos mercadores a quem, em troca, se concediam privilégios. Os Cristãos-Novos beneficiaram da situação anormal do reino. Tanto em Portugal como fora dele (Holanda, Alemanha, etc.), capitais judaicos auxiliaram a causa da independência e auxiliaram-se a si mesmos em operações rendosas. Empréstimos conseguidos de companhias judaicas permitiram comprar navios, munições e soldados para a defesa."[4]

Tendo isso em linha de conta e considerando que em determinado período se correu o risco do alargamento do conflito a outros países, tais como a Inglaterra de Cromwell e a Holanda (devido ao fim da trégua estabelecida com este país dez anos antes), se compreenderá melhor o dramático decreto promulgado pelo rei a 27 de Maio de 1651, onde deliberou:

"Em conformidade do que me representou o Conselho da Fazenda sobre os meios de se achar dinheiro para defesa do reino e suas conquistas nas guerras que se receiam de Holanda e Inglaterra; hei por bem se ponham éditos para se venderem Juros, Tenças, Lugares, Jurisdições ou qualquer outra coisa[5] das que possui esta coroa e se vendam com efeito pelo preço justo, dando-me conta do que parecer necessário. E porque o Príncipe [D. Teodósio], meu sobretodos muito amado e prezado filho, manda vender juros na Casa de Bragança para o mesmo efeito, e uma e outra coisa convirá entender-se para que meus vassalos a esta imitação se disponham a ajudar com o que puderem a defesa de guerras que se fazem; por parecer dos Tribunais que representam o reino, se fará de tudo menção nos éditos."[6]

Nesta perspectiva, ainda segundo a opinião do Prof. Oliveira Marques:

"A guerra da Restauração mobilizou todos os esforços que Portugal podia dispender e absorveu enormes somas de dinheiro. Pior do que isso, impediu o governo de conceder ajuda às frequentemente atacadas possessões ultramarinas. Mas se o cerne do Império, pelo menos na Ásia, teve de ser sacrificado, salvou-se pelo menos a Metrópole de uma ocupação pelas forças espanholas."[7]

Assim, dois anos depois, através de uma consulta do Conselho Ultramarino de 21 de Julho de 1653, "sobre o grande aperto e miséria em que se acha o Estado da Índia e convir acodir-se-lhe com socorros [...].

Pareceu ao Conselho logo logo (sic) lembrar a V. Maj. que por serviço seu e conservação daquelas tão estendidas cristandades e que tanto sangue tem custado, deve comunicar este aperto com o Conselho da Fazenda para que dando o estado da [fazenda] de V. Maj. lugar, se mande logo na monção que entra algum socorro à Índia que, ainda que seja pequeno, vem o tal antecipado a ser melhor e de mais efeito que o maior indo tarde, e não se vota em qual deve ser o socorro, por se não saber o estado em que a fazenda de V. Maj. se acha".[8]

Por decisão de D. João IV em 5 de Agosto do mesmo ano de 1653 e conforme a resposta do Conselho da Fazenda "sobre os meios que há de dinheiro para o socorro que em Setembro deve passar à Índia" deliberou o monarca que "parece-me bem que nesta monção de Setembro se aprestem para passarem em direitura à Goa, os galeões São Tomé e São Francisco e para a despesa que se há de fazer com eles, consigno o procedido da venda do ofício de Correio do Mar,[9] que o Conselho encarregará a um dos ministros dele para procurar compradores e se ajuste com o que mais der e referindo no Conselho o último lance se me consulte, e se parecer por éditos se façam logo".[10]

Como veremos mais adiante, não surgirão interessados na compra deste ofício. Mas, por um outro decreto do governante português durante mais ou menos a mesma época,[11] "mostra-se que havendo o dito senhor respeito ao que por parte dos homens de negócio desta cidade se lhe representou, em razão da grande utilidade e certeza que se requeria para correspondência das cartas que vem de fora do reino por mar, de haver na dita cidade uma pessoa destinada para as recolher a qual, com diligência e segurança, as faça dar a seus donos ou as tenha fielmente em guarda até as mandarem buscar, sendo para o dito efeito de muita satisfação, confiança e inteligência; e por parecer assim conveniente e que as ditas cartas que vierem para este reino por mar, tenham lugar certo aonde seus donos acudam a buscá-las e na pessoa de João Nunes Santarém concorrerem as partes referidas para boa satisfação do sobredito, como tinha mostrado algumas ocasiões que se lhe encarregaram, e tendo consideração aos serviços que lhe tinha feito: havia por bem (até outra determinação) de nomear ao dito João Nunes Santarém, por Assistente das Cartas de Ultramar que vierem para este reino de fora dele, das quais levaria os portes que lhe quisessem dar, não passando do costumado. Para cujo efeito os mestres e oficiais dos navios, ou quaisquer outras pessoas a quem forem encarregadas as ditas cartas em geral, as entreguem ao dito João Nunes Santarém, para de sua casa se entregarem a seus donos, fazendo as listas e memórias que necessário forem, para melhor e mais breve expedição e para que se não percam nem retardem as mesmas cartas, como tudo consta do dito decreto".[12]

Mas, a reacção à criação deste ofício de Assistente das Cartas de Ultramar não se fêz esperar. Com a morte do Príncipe herdeiro D. Teodósio, a 15 de Maio de 1653, convocou D. João IV as Cortes que se reuniram em Lisboa entre Outubro de 1653 a Fevereiro do ano seguinte, para o juramento de D. Afonso como herdeiro substituto à coroa e "para assentar nelas algumas coisas importantes ao bem comum, conservação e defensa do reino".[13] A 12 de Janeiro de 1654, os procuradores dos três estados (clero, nobreza e povo) representaram ao monarca, através do Capítulo 38 dos Capítulos Gerais, que:

"O ofício de Correio do Mar que de novo se criou, é de grande prejuízo e não serve de mais que de dilatar a data das cartas e papéis que vem de fora além de que, a pessoa que serve, abre os maços e põe portes excessivos nas cartas, sendo que nem as trás ao reino, nem tem trabalho algum e só faz negociação do dito ofício que nunca houve. Pedem os povos a V. Maj., o mande extinguir de todo e que não haja tal ofício".[14]

Em 23 de Fevereiro, respondeu D. João aos procuradores dos povos, que "sobre o que me propondes neste capítulo, corre litígio. E, porém, sendo conveniente que não haja este ofício que não houve no reino, o mandarei considerar e tomar na matéria resolução. E quando pareça que o deva haver, se lhe dará regimento para se proceder nele muito conforme ao que a razão pedir, provendo-se quando deva, e fosse em pessoas que o exercite com toda a pontualidade e satisfação".[15]

O litígio que havia por causa do polémico ofício, era, como não poderia deixar de ser, entre o Correio-Mor Luís Gomes da Mata e o tal Assistente das Cartas de Ultramar, João Nunes Santarém. Nos argumentos apresentados em juízo por Luís Gomes, "mostra-se embargar o autor [Correio-Mor] o dito decreto [de Assistente das Cartas de Ultramar] com fundamento de não se poder fazer obra por portaria sem alvará ou carta do dito senhor [o rei], e de ser contra a autoridade e preeminências dele Correio-Mor e de seu ofício e casa, haver pessoa no reino que receba e dê cartas por listas, e que o seu ofício foi comprado por preço de setenta mil cruzados, com as honras e preeminências que tinha e gozava o Correio-Mor de Castela; e que o dito Correio-Mor de Castela recebe e dá por lista todas as cartas vindas por mar de Itália, Flandres e outras partes, e que o ofício de Correio-Mor é e foi sempre único neste reino, sem haver Assistente das Cartas que vem por mar. E que quando haja Correio do Mar, o deve ser ele Correio-Mor por convir assim ao serviço do dito senhor e bem do reino, mormente havendo de se levar portes das ditas cartas, com que ele Correio-Mor se lhe ficava suprindo parte da quebra que teve em seu ofício, faltando-lhe as cartas de toda a Espanha, Itália, França e Flandres depois da feliz aclamação do dito senhor e que todas as vezes que a ele autor se lhe ordenou da parte de Sua Majestade ou de seus Tribunais, que mandasse correios ao mar com cartas às armadas e naus da Índia, o executou pontualmente mandando correios por sua ordem e fazendo-lhe a despesa [...]. E, finalmente, que o Correio-Mor de Castela, de cujas preeminências o autor deve usar por sua carta, era também Correio do Mar como parece do contrato [...] que ele fez com El Rei de Castela, em que desistiu do ofício de Correio-Mor do Reino de Portugal e das Índias e que em o réu [João Nunes Santarém] receber e remeter as cartas do mar, há grandes inconvenientes porque as envia por almocreves e outras pessoas semelhantes".[16]

Contra estes argumentos, respondeu João Nunes Santarém: "que Sua Majestade foi servido nomeá-lo por Assistente das Cartas de Ultramar, havendo respeito ao que se lhe representou por parte dos homens de negócio desta cidade e a grande utilidade que disso se seguiria à República, havendo Assistente para as ditas cartas e que no decreto [...] em que o dito senhor lhe cometeu a dita assistência, não se encontra a carta do ofício de Correio-Mor passada aos antecessores do autor, nem o autor tem utilidade alguma das cartas que vem de mar em fora, porquanto o seu ofício é limitado para as cartas que vem por terra e não pode o autor impedir ao réu a continuação da comissão que fêz o dito senhor; e que nem ainda poderá criar o dito senhor de novo este ofício e que assim se colhe da sentença que se deu contra ele autor, em favor de Manuel da Costa Brandão e Jerónimo Nunes,[17] e que não há razão para o autor lhe impedir a mercê que o dito senhor lhe fêz com respeito a seus serviços".[18]

Neste feito, o Escrivão da Coroa em acórdão da Relação, proferiu em 30 de Maio de 1656 a seguinte sentença:

"O que tudo visto, com o mais dos autos e disposição de direito, e como ainda que a carta do autor [Correio-Mor] declare que se concede o dito ofício com todo o direito e preeminências do Correio-Mor de Castela e ele seja também Correio-Mor do Mar, contudo não foi tenção do rei que vendeu o dito ofício ao tio[19] do autor, vender-lhe também o ofício de Correio-Mor do Mar, coisa que no tempo da venda não havia neste reino, nem veio à mente e consideração do príncipe vender-lhe o ofício que se não imaginava poderia haver. Julgam que o dito ofício de Correio-Mor ou Assistente do Mar não pertence ao autor por sua carta e que o poderá requerer a Sua Majestade, e alegar as conveniências e mais razões que aponta para haver de andar no ofício do Correio-Mor. Julgam, outrossim, os embargos recebidos [do autor Correio-Mor] por não provados e que o réu não tem no dito ofício de Correio ou Assistente das Cartas que vem por mar, mais que uma comissão precária, a qual o dito senhor pode revogar e dispor do dito ofício como mais convenha a seu serviço".[20]

Porém, seis meses depois, em 22 de Novembro do mesmo ano de 1656, por recurso do Correio-Mor, foi dada uma nova sentença do seguinte teor:

"Acórdão em Relação, etc. Recebem os embargos próximos para efeito de anular a sentença embargada naquela parte em que julga aos primeiros embargos por não provados, e deferindo a eles os julgam por provados e a portaria embargada por nula. E mandam que por ela se não faça obra por não ser carta passada pela Chancelaria e pelo mais que dos autos consta. E sobre o direito que o embargante pretende ter no ofício, poderá requerer ao dito senhor e assim o poderão fazer os mais pretendentes que houver".[21]

Esta nova sentença foi proferida pouco tempo depois da morte de D. João IV, ocorrida em 8 de Novembro do mesmo ano. Devido a menoridade do novo Rei, D. Afonso VI, assumiu a regência do reino a Rainha sua mãe, D. Luísa de Gusmão. Assim, por decreto de 25 de Abril de 1657 ao Conselho da Fazenda, ordenava a regente em nome do seu filho, que: "Por aviso do Regedor da Casa da Suplicação, entendi estavam sentenciadas as dúvidas sobre o ofício de Correio-Mor do Mar. O Conselho da Fazenda o faça logo vender na forma que El Rei, meu senhor e pai, o tinha resoluto. O que se fará logo para acudir com o procedido as necessidades presentes".[22]

Em decorrência deste decreto, comprou o Correio-Mor o novo ofício pela quantia de oito mil cruzados e obteve por isso, um regimento passado em 9 de Junho (que analisaremos mais detalhadamente no próximo capítulo), e a carta de doação passada em nome de D. Afonso VI, de 26 de Outubro do mesmo ano de 1657, "que pela utilidade pública de meus reinos e por outras justas causas que a isso me moveram, houve por bem anexar ao ofício de Correio-Mor destes meus Reinos que hoje possui Luís Gomes da Mata, Fidalgo de minha Casa, vinculado em morgado de seus antecessores, o ofício de Correio-Mor das Cartas do Mar e de lhe fazer dele mercê de juro e herdade para todo sempre, para que o sirva, logre e possua sujeito aos mesmos vínculos, sucessões e perpetuidade do dito morgado e sob as mesmas condições, privilégios e liberdades da sua primeira carta e provisão, assim a seu respeito como de seus assistentes e isto por título oneroso de compra e serviço de oito mil cruzados [...] para os gastos e despesas do exército de Alentejo; e por remuneração de seus serviços e dos predecessores feitos à minha coroa no dito ofício de Correio-Mor do Reino e fora dele, e esta mercê lhe faço de moto próprio, certa ciência, poder real e absoluto em que com os de meu Conselho achei convinha a criação do dito novo ofício não ser em outra pessoa, senão na do dito Luís Gomes da Mata, por lhe não prejudicar ao primeiro e ficar eu e meus vassalos melhor servido com esta união".[23]

Contudo, João Nunes Santarém não desistirá de tentar obter a primazia ao polémico cargo interpondo novo recurso. Sobre ele, por um outro decreto de 13 de Novembro de 1657, ordenava a Regente: "Vejam-se logo no Conselho da Fazenda os embargos com que João Nunes Santarém veio à carta do Correio-Mor do Mar que mandei passar a Luís Gomes da Mata, Correio-Mor do Reino; e se me consulte logo sobre eles o que parecer ao Conselho devo fazer na matéria".[24] Na resposta, a 22 de Fevereiro de 1658:

"Ao Conselho parece que os ditos embargos não são de receber nem tem matéria de substância em que se deva reparar, porquanto a conveniência que em seu princípio refere porque se instituiu o Correio de Mar, se ficará conseguindo exercitando-se conforme a carta embargada e regimento que se fêz. O direito próprio em que o embargante João Nunes funda sua acção, é nenhum e assim se julgou por sentença da Relação dada neste caso. A equidade que mais alega de este ofício se lhe dever antes vender a ele, não tem lugar, assim porque ele soube muito bem que o ofício andava em venda e nunca lançou nele, como porque o bem público e o exercício do ofício não se podia bem praticar sem andar junto com o do Correio-Mor do Reino por grandíssimos inconvenientes e dificuldades que no contrário se oferecerão. De tudo o que se passou nesta matéria teve V. Maj. [a Regente] e S. Maj. [D. João IV], que Deus haja, muito perfeita notícia e particularmente de como o embargante João Nunes Santarém estava naquele exercício e assim se não pode considerar obrepçäo e subrepção.

E quanto ao que acrescenta o Procurador da Fazenda acerca de se poder esperar maior preço da venda deste ofício, isto diz ele porque como ainda não estava neste Conselho quando o negócio se tratou e se examinaram suas circunstâncias, não tem conhecimento do que sobre tudo passou. O rendimento do ofício não só não é tão grande como se lhe representa, mas antes é de pouca consideração pela impossibilidade que há para se porem em arrecadação as cartas que vêm nas embarcações, as quais os oficiais delas e passageiros, tiram e dão a quem querem, sem se poder impedir por mais diligências que se façam e sem embargo de se fazer despesa em sustentar uma falua para vigiar[25] e, finalmente, por não haver quem quisesse arriscar tanto dinheiro por coisa nova que ordinariamente tem impossível execução; não se achou maior lance e ainda que o houvera, se tinha acordado pelos Ministros de V. Maj. que convinha dar-se mais barato ao Correio-Mor do Reino porque além da fidelidade e pontualidade que é necessária para este ofício pelo muito que importa os avisos da mercância, a qual satisfação se tem experimentado no Correio-Mor do Reino há tantos anos; concorria mais não se poder servir este Ofício do Mar senão por quem tivesse juntamente o da Terra, em razão de lhe pertencerem os portes das cartas que se remetessem de uns portos a outros e para todo o reino, e por outras considerações que se fizeram como acima fica dito.

Pelo que, parece que sem embargo dos ditos embargos, deve V. Maj. mandar entregar a carta ao Correio-Mor para por ela continuar no exercício deste ofício".

Em conclusão, a Regente D. Luísa de Gusmão deliberou: "Como parece. Com declaração que se o Correio-Mor houver de pôr Assistentes nas conquistas, o não fará sem aprovação do Conselho Ultramarino e assim lho mando avisar".[26]

O sucesso da compra deste controverso ofício de Correio-Mor das Cartas do Mar, não teria sido possível sem a intervenção do irmão de Luís Gomes da Mata, o Arcediago Duarte Gomes da Mata, que já atrás o referenciamos a propósito das críticas que tecia ao carácter do irmão Correio-Mor. Figura influente no seu tempo, apesar de ser um religioso, foi um importante financiador da Guerra da Restauração devido a ter herdado todos os bens não vinculados de seu tio António Gomes. Escreveu ainda uma interessantíssima memória elaborada posteriormente a 1659 e em que deixa bem transparecer a opinião que tinha de seu irmão, ao dizer:

"Toda a minha vida não fiz outra coisa mais que servir ao Sr. Correio-Mor Luís Gomes da Mata, começando os meus serviços aos primeiros anos tanto que comecei a ter quatro vinténs de meu e crescendo ao passo que me crescia o cabedal, porém, deixando a parte os que não têm nome senão a respeito do que eu possuía naquele tempo.

Quis o dito Sr. embarcar-se em uma armada, haverá trinta e oito anos, em que foi General Tristão de Mendonça. E porque meu pai e tio o não socorreram para esta ocasião por se não conformarem com a resolução, eu me empenhei buscando dinheiro de várias pessoas para suprir esta falta de que me resultaram dois danos mui consideráveis:

O primeiro, indignar-se meu tio, o Sr. Correio-Mor, de maneira contra mim que faltou muitos meses com o que me costumava dar e meu pai, aplicando ao meu desempenho com que muitos tempos não tive com que comprar uns sapatos.

Depois, sendo eu seu imediato sucessor e único, porque não tínhamos outro irmão secular, tomei ordens sacras tanto que tive vinte e quatro anos com muitas contradições de meu pai e tio por este respeito, alegando-me as esperanças que deixava de lhe poder suceder na casa as quais desprezei para que não tendo meu pai e tio outro sucessor para que apelar, se resolvessem dar logo estado ao dito meu irmão, como fizeram em efeito, mandando-me a mim logo a Madrid para lhe segurar o ofício de Correio-Mor e efectuado este negócio, o casaram também logo.

E quanto ao primeiro, fiz outra fineza mui correspondente ou avantajada as referidas, porque fui a Madrid pretender que passasse o ofício de meu tio ao dito meu irmão, sem que meu pai entrasse nele, sendo que em o possuir o dito meu pai, tinha eu grandíssimos interesses, assim em razão da renda que acrescia com o dito ofício, em que se aumentava muito a minha legítima porque rendia naquele tempo com a vantagem que se pode considerar ao presente e além disto, havia eu de ser provido nos ofícios que fossem vagando no reino que são muitos e da importância que é notória.

E para tirar a meu pai o escrúpulo que para a sua consciência preponderava, mais que os aumentos da fazenda e autoridade do ofício, e o alentar na despesa que se havia de fazer e gastos da minha assistência na Corte de Madrid, lhe ofereci as minhas legítimas quando as de meu irmão não bastassem, como não bastaram; nem se conseguira o negócio se meu tio não contribuíra igualmente com meu pai para o gasto que se fêz, tão mal agradecido como o mais e no que meu pai desembolsou da sua parte que foram sete mil cruzados, fiquei eu defraudado assim na renda que se lhe diminuiu, como no que havia de haver na minha legítima.

Casou depois o dito Sr. com a Sr.ª. Dona Violante de Castro e deu-lhe meu pai uns alimentos mui excessivos ao seu cabedal e todo o móvel precioso que lhe ficou de minha mãe, ficando o dito meu pai tão pobre, que foi necessário dar-lhe meu tio uma esmola cada ano para o ajudar a sustentar, ficando eu também nisto mui leso porque além de faltar na casa a limpeza necessária para um homem de bem, faltava também o cómodo na renda para o preciso, em que tudo me conformei para meu irmão ficar acomodado e com estado.

Vim de Madrid, trouxe-lhe os dixes (sic) a que mal podia chegar o limite do meu cabedal e nas ocasiões que teve, lhe dei o que tirava da boca e do vestir para lhe poder acudir, de que me resultou entrar meu tio comigo em grandíssimas desconfianças por ter naquele tempo do dito meu irmão, notáveis escândalos e chegar a desconfiança a termos que me tirou a fala e proibiu a entrada em sua casa, sendo as minhas dependências da sua graça e favor, as que se vêem nos efeitos de mo haver restituído.

Morreu o dito meu tio, prestei a meu irmão logo obra de seis mil cruzados para despachar correios e se desempenhar de algumas dívidas de que pagava réditos sem nenhum género de interesse meu, antes com o encargo de me pagar nos róis das despesas dos correios que além de ser trabalhosa a cobrança, havia de ser também detençosa e custosa,[27] de que me está devendo ainda a metade.

E sobre tudo isto, lhe dei muitas peças do móvel que herdei e a satisfação foi cobrar ele os róis sem me dar um patacão deles, e levantar-se-me com cinco ou seis mil cruzados de jóias que lhe havia prestado e me não quis restituir um só fio de pérolas que entre os demais levou, sem eu lhe prestar três mil cruzados que me está ainda devendo com as mais dívidas.

E depois deste préstimo, lhe fiz muitos outros que noutro papel aponto, sem interesses alguns que quer o dito Sr. confundir com outras partidas de dinheiro que desembolsei para a compra do ofício de Correio-Mor do Mar e obras que fiz nas casas em que mora e algumas outras que comprei junto a elas; e lhe larguei por me dar destas últimas quantias, os rendimentos nos ofícios de Coimbra e no Porto, sendo que me faltou com 150 mil réis de pensão cada ano no ofício do Porto de que tudo farei menção com distinção noutro papel, juntamente com as datas que me lembrarem fiz ao dito Sr. e a sua mulher, filhos e filhas, e serviços pessoais que se os ele soubera estimar, mereciam muito maior agradecimento que os acima referidos.

Comprei finalmente o ofício de Correio-Mor do Mar com a contradição que se sabe tão empenhado o Conde de Odemira, de que me resultou o ódio do dito Conde, tão furioso, que me descompôs e fêz daí por diante muitos pesares, sendo que antes me fazia grandíssimos favores e indo a Madrid, só comigo andava no meu coche e só a minha visita admitia".[28]

Nesta curiosa memória passamos a conhecer, além de detalhes da atribulada vida de Luís Gomes da Mata e da sua ingratidão para com o seu irmão, a necessidade que houve antes da Restauração Portuguesa, da ida do sobrinho do Correio-Mor António Gomes da Mata a Madrid, para garantir a sucessão do ofício a Luís Gomes. Isso, de certa forma, vem demonstrar que no período filipino o Correio-Mor, apesar de possuir amplos privilégios e isenções, não deveria contar somente com o que estava estipulado na carta de compra do ofício. Não nos esqueçamos porém, que não muito tempo antes, Cristóvão de Sousa Coutinho ainda pleiteava os seus direitos na sucessão do cargo, conforme vimos no início deste capítulo.

Outro dado muito importante que ficou revelado, foi a resistência oferecida pelo Conde de Odemira à venda do ofício de Correio-Mor das Cartas do Mar a Luís Gomes da Mata. Na nossa opinião, isto poderia reflectir uma disputa entre o Conselho da Fazenda (que em última instância decidiu sobre a venda do ofício) e o Conselho Ultramarino, Tribunal este, a quem competia julgar as questões respeitantes ao Ultramar e do qual o Conde de Odemira foi presidente entre 1651 a 1661.

Finalmente, o facto da Rainha Regente, D. Luísa de Gusmão, condicionar a nomeação de Assistentes do Correio-Mor nas colónias à aprovação destes pelo Conselho Ultramarino, poderia significar uma solução de consenso na disputa de jurisdição entre estes dois importantíssimos Conselhos régios.



[1] História de Portugal, vol. V, Lisboa, Ed. Verbo, 1980, pp. 74 a 76.

[2] ANTT, Ministério do Reino, livro 163, fls. 209v e 210.

[3] Idem, fl. 223v.

[4] Op. cit., p. 180.

[5] O grifo é nosso.

[6] ANTT, Ministério do Reino, livro 163, fl. 135.

[7] Op. cit., p. 181.

[8] Arquivo Histórico Ultramarino (doravante AHU), cód. 211, fls. 274 e 274v.

[9] O grifo é nosso.

[10] ANTT, Ministério do Reino, livro 163, fl. 60v.

[11] Não nos foi possível encontrar o registo original deste decreto, sendo o conteúdo do mesmo baseado numa sentença publicada por Manuel Alvares Pegas in Comentaria ad Ordinationes Regne Potugaliae..., Tomo VII, Lisboa, 1701, pp. 507 e 508.

[12] Op. cit., p. 507.

[13] Joaquim Veríssimo Serräo, op. cit., vol. V, pp. 36 e 37.

[14] ANTT, Cortes, maço 8 doc. 4.

[15] Idem.

[16] Manuel Alvares Pegas, op. cit., pp. 507 e 508.

[17] Não nos foi possível encontrar nada a respeito tanto da sentença referida, como das pessoas envolvidas.

[18] Pegas, op. cit., p. 508.

[19] Na verdade avô.

[20] Op. cit., p. 508.

[21] Idem.

[22] ANTT, Ministério do Reino, livro 164, fl. 128v.

[23] BUC, manuscrito nº 1489.

[24] ANTT, Ministério do Reino, livro 164, fl. 142v.

[25] Como exemplo, um decreto de 11 de Setembro de 1662:

"Em uma petição do Correio-Mor sobre uns navios que vieram de Itália, traziam cartas e bulas lhas não entregaram. O Conselho da Fazenda ordene se faça justiça ao suplicante em conformidade da sua carta e minhas ordens, cometendo a execução ao Ministro que lhe parecer." (ANTT, Ministério do Reino, livro 166, fl. 143).

[26] ANTT, Ministério do Reino, livro 164, fls. 19v e 20.

[27] Tratam-se das despesas dos correios feitas pela Coroa e que devido à guerra, eram sempre difíceis de serem pagas em dia.

[28] Godofredo Ferreira, Velhos Papéis do Correio, pp. 90 a 94.

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