terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

O Correio-Mor do Reino e a Restauração da Independência Portuguesa

De facto, a fidelidade e a dedicação dos Correios-Mores em Portugal, sempre estiveram acima de qualquer suspeita. Ainda que mais não fosse, devida à própria natureza do ofício. E como prova incontestável dessa fidelidade ao Reino português, encontramo-la no decurso dos acontecimentos que rodearam a aclamação de D. João IV em Lisboa, na manhã do dia 1º de Dezembro de 1640. No dizer do Conde da Ericeira, na sua fundamental obra sobre a História de Portugal Restaurado:

"Voltaram ao paço todos os fidalgos que se haviam espalhado por várias partes da cidade, depois de a deixarem com tal sossego, que dentro de três horas não parecia aquela o mesmo teatro onde se haviam representado tantos sucessos diferentes. Trataram logo de eleger Governadores, enquanto o Duque de Bragança, já Rei de Portugal, não chegava de Vila Viçosa [...].

Logo que os Governadores aceitaram, despediram vários correios a todas as cidades e vilas maiores do reino, fazendo-lhes aviso da resolução que Lisboa havia tomado de restituir Portugal à Sereníssima Casa de Bragança [...] e que esperavam que, como verdadeiros portugueses, seguissem a voz de Lisboa e se prevenissem contra a invasão de Castela, de que Deus lhes havia de dar vitória, como sempre concedera a seus antepassados. Despedidos os correios ao meio-dia, se recolheram os Governadores para suas casas, admirados de acharem a cidade no mesmo sossego que o dia antecedente e as lojas dos mercadores e tendas abertas, sem haver em tanto reboliço e inquietação, quem ofendesse nem roubasse pessoa alguma, verdadeiro sinal de que a disposição era divina. E sendo semelhantes dias os mais próprios de vingança, ficou esta para exemplo da concórdia, porque todos os que não estavam conformes depuseram a inimizade, querendo achar-se unidos na guerra que esperavam".[1]

Na expedição desses correios, os Governadores do Reino muito certamente tiveram que contar com a preciosa ajuda do Correio-Mor. Aliás, o apoio de António Gomes da Mata ao movimento não só foi imediato como um mês após a aclamação, em 4 de Janeiro de 1641, ofereceu comprar 20 mil cruzados em Padrões de Juro à fazenda real[2] para ajudar no financiamento da defesa do reino. De certa forma, o desinteresse que demonstrou ao abraçar a causa independentista é bem patente se pensarmos no enorme prejuízo que sofreu com a interrupção do tráfego postal terrestre através de Espanha. Não nos esqueçamos também, que a quase totalidade da correspondência portuguesa com o resto da Europa se fazia através da conexão Elvas-Badajós e que a Guerra da Restauração durará 28 longos anos!

Provavelmente, o Correio-Mor teve alguma compensação do seu prejuízo, devido ao grande aumento que então se verificou no tráfego postal dentro do reino, não só para o atendimento da demanda da correspondência de carácter militar, como também da correspondência mercantil e administrativa. Assim, não causou nenhuma surpresa o facto de António Gomes da Mata ter sido confirmado no cargo por D. João IV, com todos os seus privilégios, prerrogativas e isenções, através da carta de doação e sucessão feita em Lisboa a 28 de Junho de 1641, onde "havendo também respeito aos serviços que o dito António Gomes me fêz em algumas ocasiões e por esperar dele que nas que se oferecer os continue [...] hei por bem de lhe fazer [mercê] do dito cargo de Correio-Mor destes meus Reinos de juro e herdade para todo sempre [...]" e onde acrescentou, por um outro alvará da mesma data, a faculdade "para que Luís Gomes da Mata, seu sobrinho e sucessor imediato do dito ofício, por consentimento que para isso tem de seu pai, João Gomes da Mata, possa exercer o dito ofício em seus impedimentos, sem ser necessário outro título algum, mais que o que tem e tão somente como jurar na Chancelaria e que quando por seu falecimento haja de entrar o dito Luís Gomes da Mata na propriedade do dito ofício, o possa fazer debaixo do mesmo juramento, sem ser necessário tomar outro, nem haver de tirar carta ou título de novo, senão em virtude do primeiro e que o mesmo seja e se continue em todos os sucessores que adiante sucederem no dito ofício, sem que lhes seja necessário proceder carta de novo ou outro título algum, mais que jurar na Chancelaria".[3]

O Prof. Oliveira Marques, analisando os apoios das classes sociais portuguesas ao novo regime, constata:

"Quanto aos burgueses, a grande maioria não participou no movimento separatista e foi apanhada de surpresa. A sua atitude depois de 1640 mostrou-se, geralmente, de expectativa neutral. Muitos mercadores e capitalistas estavam metidos em negócios em Espanha, possuindo aí, ou no Império Espanhol, boa parte de seus bens. Outro grupo, porém, com um núcleo importante de cristãos-novos e conexões de relevo fora da Península Ibérica - na Holanda e na Alemanha sobretudo - apoiou a revolução e ajudou a financiá-la. É que os negócios deste grupo dependiam muito mais do tráfico atlântico (Brasil) e do tráfico com a Europa Ocidental e Setentrional."[4] Neste sentido, poderemos concluir que o Correio-Mor pertenceria a este último grupo.

Ao falecer António Gomes da Mata sem filhos, em 30 de Dezembro de 1641, veio a suceder automaticamente no cargo (conforme o alvará atrás referido) o seu único sobrinho por linha masculina que não era eclesiástico - Luís Gomes da Mata - filho de seu irmão João. De acordo com Godofredo Ferreira:

"Foi, como os antecessores, fidalgo da Casa d'El Rei com mil e quatrocentos réis de moradia e, como eles, possuidor de fartos haveres que lhe permitiram estadear grande fausto e fazer casamento nobilíssimo, escolhendo para esposa D. Violante de Castro, filha de Lopo de Sousa Coutinho e de D. Joana de Castro. Com esta aliança matrimonial não só entrou na família o apelido 'Sousa Coutinho', que daí em diante sempre ostentaram os descendentes, mas começou também para os 'Matas' uma nova vida mais afastada daquela febre de negócio que caracterizou os seus antepassados, e mais próxima das elegâncias e ostentações mundanas."[5]

Talvez por isso o seu irmão, o Cónego Duarte Gomes da Mata, não o tivesse em muito boa conta ao desabafar que Luís Gomes era "gastador do que não tinha, com prejuízo do pai e dos irmãos, ingrato, pouco escrupuloso em contas e faltando facilmente a palavra dada".[6] Isto porém, não impedirá o Cónego de socorrer o irmão em várias ocasiões, conforme veremos no final deste capítulo com relação à compra do ofício de Correio-Mor das Cartas do Mar. Mesmo o seu tio, muito embora nomeando-o herdeiro do ofício, deixa transparecer o ter em pouca estima, conforme se pode deduzir da carta que escreveu à mulher de Luís Gomes, onde admite a possibilidade de o deserdar:

"Minha Srª. Dona Violante de Castro, o Sr. Gonçalo Vaz Coutinho me disse que v.m. se queixava de mim por lhe haver revelado o Doutor Clemente Félix, que eu determinava deixar a minha fazenda em morgados para meus dois sobrinhos os Vasconcelos e António Pereira.[7] Não nego a v.m. que assim o intento mas também creio que todos eles ande ser de seus filhos de v.m., que é moça e terá muitos, querendo Deus, e qualquer de meus sobrinhos que morra sem eles, mete em casa de v.m. essa herança e ainda que seu marido de v.m. mo não mereça e anda publicando que eu o roubo, a minha vontade é somente acrescentar a sua casa por respeito de v.m., a quem sempre desejo servir".[8]

A administração do Correio-Mor Luís Gomes da Mata, que exerceu o cargo entre 1641 a 1674, atravessou um dos períodos mais dramáticos da história portuguesa devido à Guerra da Restauração. Este facto, como não poderia deixar de ser, teve um grande reflexo na gestão do ofício, obrigando a coroa a uma tentativa de racionalização dos gastos num serviço de vital importância para a condução dos negócios públicos. Sendo assim, D. João IV, por regimento de 17 de Fevereiro de 1644, "que porquanto tenho entendido que no ofício de Correio-Mor não há regimento e regra certa por que se governem os oficiais que nele servem e minha fazenda se despende todos os dias em correios em tão grande quantidade sem haver nela o resguardo que convém, ficando tudo na confiança dos ministros, que ainda que de presente servem com toda a limpeza e verdade que deles se deve esperar, contudo, pelo risco que pode haver de não ser sempre o que convém e não ser justo que tanta fazenda minha se despenda sem haver regimento ou forma certa com que se faça, e querendo prover nisto, hei por bem que daqui em diante se guarde o seguinte:

Como o Correio-Mor tenha pessoas pela maior parte deste reino a que chamam seus 'Assistentes e Lugar Tenentes' nas cartas dos ofícios que lhes passa, e nesta corte tenha 'Oficial Maior', que vem a ser o mesmo uns e outros, haverão juramento assim como o há o dito Correio-Mor, para que debaixo dele fiquem obrigados a que com toda a verdade e pontualidade, apoupem minha fazenda e dêm o melhor expediente dos correios. [...]

Que indo algum correio despachado por algum Tribunal, se avisará logo a Secretaria de Estado e Mercês, para se saber se para a parte para onde vai aquele correio, há alguma coisa do meu serviço que possa levar ou encaminhar e indo para as fronteiras, se fará a mesma diligência na Junta delas, para com isso se impedir o duplicarem-se os correios por não se saber quando para as mesmas partes se despacha. [...]

Que estando eu fora desta corte em qualquer parte do reino e convenha a meu serviço haver correio ordinário com meus despachos cada semana, como de presente se faz para Entre-Douro e Minho, e Alentejo; se o tal correio for a custa do dito Correio-Mor, serão os portes das cartas que levar seus e sendo pago por minha fazenda, farão também por conta dela os portes das ditas cartas e se pagará ao oficial que assistir na tal parte o tanto que é costume por se fazerem boas as ditas cartas, por ser este o percalço que os tais Assistentes costumam levar e a décima que também lhe é aplicada.

Que convindo a meu serviço que haja outra vez correios de cavalo,[9] se pagará a cada correio uma pataca por cada légua: dois tostões para os cavalos e seis vinténs para o correio, e terá obrigação este correio de andar nas viagens extraordinárias em cada duas horas e meia, três léguas e o ordinário, a légua por hora; e este não levará nunca carga nenhuma mais que o que se lhe der na Secretaria e despachos do meu serviço que haja no ofício de Correio-Mor, ainda que seja de ministros. [...]

Que das viagens particulares de meus vassalos, não levará o dito Correio-Mor mais que leva das que vão de meu serviço.

Pelo que, mando a Luís Gomes da Mata, fidalgo de minha casa e meu Correio-Mor, e oficiais que servem com ele, guardem inteiramente daqui por diante tudo o conteúdo neste regimento, por assim convir muito a meu serviço e melhor expediente dele e das partes, e maior segurança à minha fazenda, pelo que derrogo todos os costumes e estilos ou posse que haja em contrário, porque assim o hei por bem, não se alterando nada no tocante a carta do ofício do dito Correio-Mor, porque com ela e com este novo regimento o servirá como até agora o fêz".[10]



[1] Edição anotada e prefaciada por António Alvaro Dória, vol. I, Porto, Ed. Civilização, 1945, p. 125. Os grifos são nossos.

[2] ANTT, Ministério do Reino, livro 161, fl. 5v.

[3] Idem, maço 634.

[4] História de Portugal, vol. II, Lisboa, Palas Ed., 9ª ed., 1983, p. 177.

[5] Dos Correios-Mores..., p. 66.

[6] Idem.

[7] Sobrinhos por linha feminina.

[8] Godofredo Ferreira, "O Correio-Mor Luís Gomes da Mata (2º) Retratado por seu Irmão" in Velhos Papéis do Correio, Lisboa, CTT, 1950, p. 89.

[9] Devido à guerra, havia uma grande escassez de cavalos.

[10] Dos Correios-Mores..., pp. 69 a 75.

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